terça-feira, 27 de março de 2007

Comporte-se

Dia desses, olhei nos olhos de minha filha e disse:

- Tu tem que te comportar.
- Porque pai?

Ao invés de responder, eu desconversei, e disse que era o certo o que eu estava falando. Acabaram os meus argumentos.

Durante toda a vida eu me comportei:

Não joguei pedra na vidraça da vizinha fofoqueira
Não xinguei a mesma vizinha
Não briguei na rua
Não mexi com minhas colegas da escola
Não matei aula
Não deixei de fazer o dever de casa
Não comi mais do que devia
Não comia menos do que devia
Não deixei de tomar banho por preguiça
Não proferi infâmia sobre os outros
Não menti
Não pequei
Não fiz nada fora da lei

E agora, com 27 anos, eu sou o mesmo que qualquer outro que não tenha se privado de tudo o que estava com vontade de fazer. Ou melhor, eu não me diverti como eles, e tenho menos histórias pra contar que a maioria.

- Porque pai?
- ...!!

sexta-feira, 23 de março de 2007

Pelo coisa ruim

A última vez que vi o demônio, ele me disse o que eu precisava saber. Ele postou a mão sobre minhas feridas e disse “Esse teu corpo é o que te vale” e me tirou a dor e as cicatrizes. Ainda disse “Pregue a pobreza e a ignorância perante os outros em meu nome, e serás expulso de onde estiver. Entretanto, faça a mesma coisa em nome de Deus, e verá o teu império nascer e crescer”.
Dias depois, fundei uma seita, onde os mais fracos nos carregam nas costas. Em nossas carruagens de puro ouro e diamantes, ninguém imagina de que tramas nós tratamos. Há um mundo aos meus pés, que me saúda como líder.

Texto encontrado em um baú no Vaticano

terça-feira, 20 de março de 2007

Perto demais

Não, não é assim que se escreve.

É impressionante como sempre chego muito perto, mas nunca consigo tocar o meu objetivo. Corre, salta, grita, o objetivo foge, me deixa na saudade.

Na euforia, eu sempre esqueço do principal: Me esquecer da euforia.

Mary Jane

Ela chegou em casa bem pequena. Lembro que disse a minha irmã que havia sido enganada, que não era um Pastor Alemão. Ela confirmou que havia comprado em uma loja, que forneceu a documentação do animal, e tudo mais. Pensei comigo: "Como esse bicho vai crescer e virar um Pastor?". A resposta me veio em poucos meses.

No primeiro inverno, eu quase não conseguia mais pegá-la no colo. Ela era um bebê de uns 25 quilos, e crescendo. Não sabia fazer outra coisa senão brincar de morder o meu sapato, mesmo com meu pé dentro dele. Às vezes pela manhã, principalmente quando eu não queria, ela tentava me derrubar no chão para brincar. Por várias vezes tive que voltar para casa e trocar de roupa, me atrasando para o trabalho ou para a aula.

Quando esfriou muito, ela ganhou um suéter de lã, nunca mais me esqueci. Eu nunca havia visto um cão daquele tamanho com um suéter, assim como os meus vizinhos. Era a sensação da rua inteira. Em um dia com geada, tirou uma bela foto no gramado com o seu suéter.

Ela crescia e se tornava cada vez mais membro da família. Seu choro era ouvido como reclamação. Quando se estava sozinho, ela era o ombro amigo. A conversa, em que ela escutava apenas, era como um desabafo com um amigo. Por diversas vezes, me peguei pensando nela como um irmão ou primo, que tinha ali uma função familiar. Não era mais só um cachorro de raça, era parte da "nossa raça", com sobrenome. O nome dela era Mary Jane.

Ela teve diversos amigos da mesma espécie, e alguns até de outra, com os quais compartilhou espaço, alimento, carinho e amizade. Mesmo assim, eles iam embora um dia, deixando seus dias mais longos e suas noites mais frias. Era visível sua tristeza ao perder um amigo querido, um ente que ela considerava parte de si mesmo, por vezes.

Eu saí de casa, aos 23 anos, formei minha família, e a cumprimentava nos fins-de-semana. Antes mesmo de chegar, ela já estava sobre as patas traseiras, pendurada à grade da frente, com quem diz: "Olá, veio nos ver? Estava com saudade". Voltei a morar na mesma casa aos 26, onde ela estava me esperando, uma herança em vida de minha família. Única moradora que nunca abandonou aquele lugar, a não ser por um curto período de férias na praia.

Neste último carnaval, ficamos todos os chuvosos dias do feriado no litoral. Arranjei um vizinho para alimentá-la e cuidá-la. Quando voltamos, ela fez aquela festa, pulando e latindo como se tivéssemos voltado depois de meses. O pote de comida cheio delatou sua depressão por estar sozinha. Na madrugada pude ouvi-la comendo desesperada.

Dia desses, quando falava com outro vizinho, ele me confessou ficar incomodado com ela no carnaval. Perguntei porque e ele me afirmou que não viu ela sair do portão nos 4 dias em que estivemos fora. Ela uivava durante toda a noite e adormecia ao amanhecer, junto ao portão, olhando para a rua. Por vezes, adormeceu mesmo na chuva e no frio, mas se recusava a sair dali. Ele disse que se a gente não voltasse na quarta-feira, ele iria ligar.

O valor de um animal, um companheiro, está no quanto ele pode te emocionar com suas atitudes.

Lembro-me de ti

Estávamos lá todo o dia, durante o todo o nosso amor. As árvores por testemunha, mesmo mortas e caídas, ofereciam sua guarida, os seus troncos recebiam a nós como poltronas. Também nós, nem percebíamos, tão perto estávamos que não podíamos ver. Tão perto estávamos um do outro que sequer podíamos respirar.
Fomos um do outro durante muito bosque.

Esquecemos, porém, como quem esquece o que não pode ser esquecido. Distraímo-nos com outros lugares e pessoas, esperando que nelas fosse vivo os galhos que floridos nos sorriam. Perdemos o cheiro acre de nossa pureza selvagem, deixamo-nos impregnar por fragrâncias outras.

O tempo inerte nos espera atrás das árvores. Lá ainda resta o bosque que guarda a nós, com mais saudade que amor, com mais tempo do que poderíamos amar.

quinta-feira, 15 de março de 2007

Timbres Infantis

Na puberdade, época de mudanças, confusão e isolamento, minha voz mudava todo o tempo. Havia dias que era uma gritaria estranha, quase animal. Outros, ela se fazia tenor, e me deixava todo feliz. Havia ainda, dias em que eu acordava grave e dormia barítono.

Depois dessa fase, eu esperava que minhas cordas vocais se fortalecessem, que parassem com a palhaçada e começassem a me ajudar. Porém, quanto mais eu esperava, mais me decepcionava. As mudanças foram diminuindo, até que não houve mudança nenhuma.

O fato é que fiquei com uma voz de menino, eternamente infantilizado na minha expressão maior. Tive que abandonar o meu sonho de ser cantor e seguir por rumos que não utilizassem unicamente a minha garganta. Nenhum suporte ao meu galanteio, nenhum ganho pela voz.

O mais difícil era aturar a minha avó ligando lá pra casa:

- Alô.
- Alô, meu filho. É a tua veia... Liguei pra saber como está a família.
- Vó... é o Rafa, quer que eu chame o pai?
- Ahhh, desculpa... vocês tem a voz igualzinha....

A genética tem das suas.

...

Conheci uma poeta, que me encanta com as suas histórias e com seu jeito. Quando trocamos mensagens, sinto que temos bastante em comum, e que nossas diferenças apenas servem para que aprendamos um com o outro. Ela tem me dado muitas idéias e acredito ter contribuído em parte com as suas. Uma troca de grande valia. Nunca havíamos nos falado, até que veio a idéia de se ligar, só para conhecer a voz um do outro. Era a curiosidade batendo a porta.

Aquele telefonema encabulado, meio sem assunto, onde se tenta esconder exatamente o que se quer saber. Assim sua voz de travasseiro me atravessou o córtex, exigindo de minha mente controle para não "se perder" no que não existe.
Ela me disse que minha voz é bonita.

A genética tem cada uma.

segunda-feira, 12 de março de 2007

Entrevista

- Por favor senhor, nós gostaríamos de fazer uma entrevista...
- Não, estou com pressa...
- Por favor senhor, é rápido, é sobre o Big Brother.
- Hum... é? E vai aparecer na tv?
- Sim, vai sim.
- Então tá. Mas tem que ser rápido mesmo, tenho que chegar ao banco em men...
- Sim, sim, não se preocupe.

Dois minutos de maquiagem e luz. O cenário era um fundo azul, completamente estranho para ele.

- Então, o senhor saberia me dizer, me contar um pouco sobre a rotina da casa do Big Brother?

Ele então discorre alguns detalhes, seus participantes preferidos, e até sua opinião simples e parcial, de trabalhador alienado do terceiro mundo. Sai feliz e satisfeito de ter contribuído com algo tão importante quanto o seu programa de televisão favorito.

Corre para o banco, na intenção de chegar na hora para pagar as contas da empresa. Eles dependem dele, imagina. É o último a entrar na agência, a fila está enorme. Liga o walkman, desligado desde o seu devaneio depois da entrevista tão importante. Uma música lhe desperta do seu inconsciente. É apenas uma valsa, uma coisa do seu passado.

...

A mãe dança com o pai na cozinha. A comida lhe espera nas panelas, enquanto o pai lhe faz a gentileza, lhe tira para dançar a sua música.

...

Tão vivo em sua mente, o falecido pai sempre distante, em um momento tão próximo. Sempre estivera tão imerso em seu inconsciente, em sua rotina impensada e cheia de rituais bobos. Lembrou de todo o tempo que perdeu estando ao mesmo tempo perto e longe dele. Sentiu que toda a culpa do mundo pesava em suas costas agora, e aquilo não era mais possível ser repetido ou concertado. Lembrou o fraco coração da mãe, que lhe aguardava em uma cama de hospital não muito longe dali.

Quando chega do trabalho, corre ao armário, tira os álbuns de fotos e beija a esposa. Corre a rua e pega o primeiro ônibus que passa perto do hospital. Entusiasmado chega ao hospital. Quando procurou pela ala e pelo número do quarto, lembrou de quanto tempo perdeu para ir até lá. Aliás, era a segunda vez que visitava a mãe naquele lugar. Ela não tinha nem doador quando ele lhe viu pela última vez. Sentiu-se com a maior culpa do mundo novamente.

...

Ela falecera segundos antes. Suas últimas palavras para com as enfermeiras foram:

- Eu vi meu filho, eu vi meu filho hoje. Ele estava na televisão.

quinta-feira, 8 de março de 2007

Assinatura

Engraçada essa contradição que me acompanha a vida toda. Uma auto-estima tão baixa que eu sou capaz de pensar antes em todos do que em mim. Um medo natural a competição e a derrota.
Entretanto, nunca escapei de deixar minha marca por onde passei. Amizades e desafetos em qualquer lugar, mesmo sem querer, eu sempre deixei.


Na adolescência, talvez até mesmo antes dela, a procura por um símbolo que me representasse era constante. Uma assinatura, literalmente, que expressasse tudo o que existia em mim. Pobre diabo, eu nem imaginava que, em constante transformação, jamais acharia algo que servisse por muito tempo. Tentei muito, até que desisti.


E como os meus apelidos me acompanharam, e me acompanham, desde a escola. Antes, chorava no meu travesseiro lembrando a humilhação, lembrando a crueldade de crianças, algumas que se diziam até "meus amigos". Não suportava que alguém, além de não enxergar exatamente o que eu era, ainda impunha uma marca, um símbolo equivocado a mim. A dor era insuportável a ponto de me tirar o sono.


Depois de tanto procurar, e de tanto me torturar pela distorção da visão alheia, é que me deu um estalo: Tanto faz o meu nome, o que me chamam ou o símbolo que utilizam. Cada um me vê de um jeito, mesmo que me faça único. Portanto, sou para os superficiais o que vêem por fora. Tenho que mostrar do que sou feito.


Mudei a grafia de meu apelido mais comum, mudei o meu comportamento. Virei a cara aos insultos, me revoltei com as ofensas. Construí em mim a mim mesmo. E pichei em cada canto branco ou liso o meu nome. Roupa preta e cabelo na cara me acompanharam a partir daí. Somente os muito próximos ouviam minha voz comportada e sóbria. Os gritos e violências se tornaram uma constante em meu comportamento de defesa. A loucura era parte de mim agora.


Me seguiram os justos. Me abandonaram os incoerentes. Em minha transformação não houve vitória nem derrota. Houve identidade, houve coração e mente. Encontrei a mim mesmo da maneira mais desesperada: Tendo que provar a mim e a todos do que era capaz.


Ainda assino como antigamente.


quarta-feira, 7 de março de 2007

Pesadelo




Era uma serpente, eu sei. Sua cor puxava pro laranja amarelado. O formato da cabeça insinuava o veneno nas presas, distinção que aprendi ainda na escola primária.

Meus pais haviam a pouco escapado, inocentes e sem danos, do ataque que sequer previram.
Ela se escondia no assoalho, embaixo da escada, onde podia vê-la entre os degraus.

O próximo a passar seria eu, seguido de minha esposa e depois minhas filhas. É obvio, que mesmo eufórico e sem pronunciar palavra, empurrei tudo escada acima, numa virada violenta e muda.

Percebi que o fato mais intrigante é que minha boca estava hermética, imóvel, e eu só conseguia respirar ofegante.

...

Minha mão tateava a cama em busca do corpo que eu tinha certeza estar ao meu lado. Em vão, vagueando o braço por sobre o colchão vazio, ofegante, com a voz trancada na garganta, eu tentava gritar o nome de quem procurava.

Desesperado, percebi estar sozinho no leito. Percebi que só podia contar comigo mesmo, o que me era solitário e triste.

...

Acordei por completo com todas as impressões possíveis na cabeça. Perda, da esperança. Solidão, por estar pensando em alguém. Temor, pelo perigo iminente. Triste, por não poder me conter dentro de mim mesmo.

terça-feira, 6 de março de 2007

Problema Social




- Pó, me dá uma moedinha de R$ 0,25 aí, só pra completar a minha passagem?
- To sem nenhum aqui meu amigo...
- Mas eu só preciso ir até o posto, trocar o curativo do meu pé. Aqui no hospital não querem fazer.
- Essa conversa outra vez?

Ela reconheceu aquela cara, que veio direto da sua sala. Como assistente social, ela conhecia todas essas conversas de pedir dinheiro. Todas as artimanhas dos pedintes e vagabundos da cidade. Inclusive, conhecia quase todos os pedintes da cidade. Reconhecia diversos de visitas à prefeitura e por incursões do Conselho Tutelar.

É incrível como podemos ser medíocres em administrar os nossos recursos sociais. Nos empenhamos hoje, por culpa de um expediente nacional de ajuda aos pobres, em manter e premiar (ou incentivar) quem não tem condições de sustentar os seus filhos. Estar em situação de pobreza não justifica ações impensadas. Temos que eliminar isso de nossas enciclopédias.

Temos que prestar assistência sim, a quem não tem condições de sustentar seus filhos e que estão lutando dia a dia pela sobrevivência dos seus. Mas quando "os seus" crescem todo ano de número às custas dos contribuintes, é burrice.

Educação... Informação e regras mais justas para os programas do governo é o que precisamos. Quem depende do governo tem seus direitos ampliados pela assistência, deveria ter metas e deveres a cumprir além dos outros contribuintes. Ao contrário do atual regime que, além de "redistribuir renda", elimina o dever destes premiados para com os outros cidadãos.

Como se já na bastasse a falta de fiscalização do setor, para lidar com fraudes.

segunda-feira, 5 de março de 2007

Cidentidade

Fico profundamente frustrado com a atual situação da cidade de Cachoeirinha.
Poucas pessoas aqui percebem a falta de cuidado que temos com nossa cultura e com nossa identidade cultural. Qual a história da cidade, por exemplo? Quem fundou? Quem construiu?

Uma rápida pesquisa no Google resolve este problema. Na Wikipedia você vai achar um ótimo artigo sobre a cidade. Bem completo, ele mostra toda a cultura adquirida pelo grande cidadão que a publicou. E só.

Nas escolas, temos que pregar isso como matéria de prova. Nomes, datas, lugares. Devemos este tributo a este lugar. Ele só não é um lugar melhor para viver por sua culpa. Pela sua arrogância de pensar que o seu voto resolve todos os seus problemas, e o deixa isento dos problemas da cidade.

O fato é, que se quer resolvidos os problemas da cidade, cobre-os de quem governa aqui. Insista em saber onde foi aplicado cada centavo do seu IPTU. Não deixe baratos os deslizes das administrações que não são para o público.

Vamos lutar para que esta cidade seja a Cidade do Desenvolvimento Social, Cultural e Político.

sexta-feira, 2 de março de 2007

Não aprendi ainda...




Quando notei aquela presença, fiquei meio nervoso. Seus olhos me fuzilaram, me deixaram estirado no chão, sem sentidos. Quando consegui me recuperar, uns 15 segundos depois, consegui desviar os olhos dela. E ela ainda persistiu algumas vezes, com seu olhar em mim, eu podia sentir o seu olhar me queimar a pele.

Seus olhos, de um azul que eu nunca havia visto, me deixaram pensativo. Porque aqueles faróis imensos e acesos procuravam iluminar a minha, até então, forma desprezível? Enchi-me de coragem e olhei novamente. Demorou uns segundos, e ela fixou na minha pessoa novamente. Dessa vez, esperei que desviasse o olhar, e isso não demorou.

Nervosamente ela mexia o cabelo de 10 em 10 segundos. De todo jeito. Achei que ela teria um ataque nervoso. Eu, imóvel permaneci. Pela minha inércia natural, e talvez pelo choque daquela situação impensada até então.

...

Cabisbaixo eu seguia para a Santa Casa. Há 2 semanas eu monitorava a minha pressão, que não andava nada baixa. A dor de cabeça estava me deixando doido e qualquer esforço me era dobrado. Ofegante eu subia a Senhor dos Passos.

Nunca foi fácil ser eu. Assim como eu acho que não é fácil ser ninguém. A dor do homem, ao levantar de manhã e carregar o seu mundo nas costas, pode ser insuportável. Pode destruir tudo o que se construir adiante. Pode inclusive eliminar a vontade de se levantar pela manhã.

O remédio receitado, o caminho alinhado, é hora de trabalhar. Inclusive, já faz horas que é hora de trabalhar.

...

Não sei em que estação ela subiu. Nem mesmo me lembro em que estação ela desceu. Mas sei que quando me olhou, me fez sentir o único verdadeiro homem naquele vagão.

Ela me olhou como se olhasse um doce na vitrine. Como se faminta por algo, fosse saltar sobre o meu corpo e me devorar de uma bocada só. Seu olhar ela libidinoso, imoral quem sabe. Sei que adorei.

Seu corpo esguio, sua pele branca. Eu quis por momentos sentar ao lado dela. Era minha segunda chance do dia, e eu não sabia o que estava acontecendo. Meus dias não são assim, devo estar sonhando ainda.

...

Enquanto eu caminhava para o ponto de ônibus, eu fiquei pensando o quanto eu sou devagar. Eu a segui por momentos no centro de POA, e ela ainda me olhava. Era evidente o seu interesse, mas mesmo assim eu não tive coragem de abordá-la. Penso no que eu poderia ter dito.

Inclusive, dizer o que a uma pessoa que não se conhece? E o pior, sabendo que o único assunto em pauta, evidente para ambos, é o interesse na aparência um do outro.

Sendo o primeiro contato verbal um marco em qualquer relacionamento, como pode ele ser desperdiçado com qualquer assunto senão o lirismo? E como mostrá-lo a alguém que não conhecemos senão à alguns minutos (talvez segundos)?

...

No ponto de ônibus, ela sorriu para mim. Não sei porque razão, eu sorri de volta, e quase exclamei algo como "Belo dia, não?". Ainda bem que não abri minha boca, pois o dia estava um inferno quente e chuvoso.

Nossos olhares se cruzaram por mais de uma vez. Numa delas, eu tive certeza de distraí-la, pois ela deixou que seu material caísse todo no chão, como quem sofre um choque violento e perde o controle dos nervos da mão.

Ela riu de si mesma, pela situação ridícula. Eu gostei mais ainda dela. Poderia alguém lindo como ela, passar por uma situação embaraçosa e ainda rir do acontecido. Ela não se cobrou nem um pouco, mesmo sobre os olhares de vários estudantes risonhos.

...

Durante todo o dia, recebi elogios dos olhos, bocas, mãos e nervosismo de mulheres. Engraçado que isso ocorreu em apenas um dia, como se ocorresse naturalmente em minha vida. Eu sofro de uma grave crise de auto-estima exatamente por causa do contrário.

Me sinto insignificante ao lado de mulheres. Me sinto as vezes um lixo ao lado de outras. E neste bem-dito dia, tudo de bom me acontece, pelo menos neste sentido.

Entretanto, tive a chance de conversar com qualquer uma delas, de trocar idéias e quem sabe, dividir as minhas intenções, e não o fiz. Não o fiz por falta de traquejo, por falta de controle de mim mesmo. É como entregar uma faca na mão de uma criança que nunca pegou o lápis e dizer "vai, me opere".

Porque nada na minha vida é aos poucos o suficiente para que eu aprenda comigo mesmo?

Sou um cara lento.